sexta-feira, 9 de maio de 2008

Grande Entrevista - A Cril da discórdia


Interesses privados sobrepõem-se aos interesses públicos

Jorge Alves é o rosto visível de um combate que opõe governo e autarquias às populações preocupadas com o traçado da CRIL. Lena d’Água, que viveu décadas no Bairro de Santa Cruz, junta-se ao movimento e dá a cara por este grito [já] rouco da cidadania

O actual projecto da Circular Rodoviária Interna de Lisboa (CRIL), adjudicado em Novembro pelo governo, é um atentado, segundo o Movimento de Cidadãos “Força Cidadania”, contra a qualidade de vida das populações de Santa Cruz, Benfica, Damaia e Alfornelos, implicando até a destruição parcial do emblemático e patrimonial Bairro de Santa Cruz, violando de forma grosseira a Declaração de Impacte Ambiental, avalizada por pareceres do Instituto do Ambiente que, entretanto, foi afastado de todo processo.
Estranhamente, o actual projecto viola compromissos assumidos com a população por todos os partidos com acento na Assembleia Municipal de Lisboa, e não tem em conta outras soluções mais lógicas, vantajosas e eficazes para a defesa da qualidade de vida dos cidadãos, do ambiente das zonas envolventes e da própria segurança rodoviária.
Os cidadãos, organizados em torno desta plataforma, alertam para o facto de “uma negociata entre as Câmaras de Lisboa e Amadora” ter decidido nas costas das populações, fazendo prevalecer interesses privados sobre o interesse público.

CC - Este problema arrasta-se desde 1994. E imagino que isto tenha surgido como um “murro no estômago”.
Jorge Alves - Nessa altura apercebi-me de uma coisa que já era vista como um facto consumado, e que era a destruição do Bairro de Santa Cruz. O projecto inicial previa a passagem de um viaduto por cima do bairro, destruindo toda essa zona. A minha primeira reacção foi avisar os vizinhos, de moto próprio decidi redigir um comunicado sob o título “Querem destruir o Bairro de Santa Cruz”. Meti-o nas caixas de correio e, como era previsível, as pessoas reagiram. Foi o tal “murro no estômago”.
CC - Mas esta é umareferência ao primeiro traçado, porque agora há outro que, ao menos, não passa por cima, passa por baixo “às arrecuas”…
Jorge Alves - Mas essa foi a primeira vez em que as pessoas tiveram consciência de que iria ali passar a CRIL. Que, aliás, era uma coisa que já estava definida desde 69. Só que nesse corredor foram-se construindo prédios, não só em Santa Cruz, mas
também em Alfornelos e noutros sítios. E, cumprindo-se o actual traçado, vai ser terrível para os moradores dessas zonas já consolidadas. É o caso de Santa Cruz, da Damaia, das Pedralvas, de Alfornelos…
A previsão é que irá arrasar com a qualidade de vida de mais de 40.000 pessoas, passando por esta zona mais de 120 mil veículos por dia. E isto, em termos de qualidade do ar e do ruído, é inaceitável. Aliás, há coisa de um mês e meio, estudos da Organização Mundial de Saúde referem que estradas de grande tráfego são consequentemente responsáveis por elevadíssimo número de mortes.
CC - Um dos vosso argumentos é o de que este traçado enferma de ilegalidade.
Jorge Alves - Para este tipo de vias há recomendações técnicas e normas que têm de ser cumpridas. E têm a ver com os aspectos da mobilidade e da eficiência rodoviária e, também, com os problemas de segurança. Uma estrada destas não se pode fazer de qualquer maneira. E, para além disto, deve haver padrões de compatibilidade entre a estrada e as populações.
Preservando a qualidade de vida, para que se faça a obra com o mínimo de impacto. E, precisamente, para criar esse equilíbrio entre o que é o interesse dos cidadãos e o interesse da obra, é que é instituída a consulta pública e a participação
das pessoas, para que os cidadãos possam falar, mostrar as suas preocupações. E é dentro desta cultura que se vão encontrar soluções sustentadas.
CC - E onde está a ilegalidade?
Jorge Alves - Está precisamente na circunstância de a obra não ter seguido estes critérios. Quer dizer, houve as consultas públicas, a última em 2004,mas tratou-se de um mero pró-forma. E esse último arremedo de consulta teve a participação de mais de mil pessoas individuais e organizações, mas tudo isto não foi tido em conta. Em matéria de segurança rodoviária, por
exemplo, este traçado adjudicado pelo governo viola de forma grave critérios de segurança.
Lena d’Água - É como se não houvesse ninguém lá a morar.
Jorge Alves - E esta violação - nem somos só nós a dizê-lo… Há estudos técnicos que dizem isso, e contra estudos técnicos não há semântica política que valha. E, para além disso, atenta contra as populações em todo o traçado.
Lena d’Água - E vão trancar o Bairro 6 de Maio, com os meus padrinhos lá metidinhos no meio, coitadinhos. Ficam lá metidos na Damaia, sem já terem saída por cima por causa do IC 19. E, depois, há o Bairro de Santa Cruz onde, mesmo fazendo um túnel…
Jorge Alves - O túnel resolvia o problema.
CC - Há uma coisa que li, se não estou em erro um parecer da Câmara da Amadora, onde se diz uma coisa extraordinária. A de que este traçado vai favorecer novas urbanizações… O que é uma coisa incrível!
Jorge Alves - Exactamente. Mas falemos de quais devem ser os padrões de orientação para um projecto destes. Tem que se ter em conta a qualidade de vida das populações, a segurança rodoviária, a mobilidade – se não a estrada não serve para nada, porque ela é feita para os carros andarem, para resolver problemas. E, neste projecto, nada disto é tido em conta. E porquê?
Porque é um traçado aos esses – e o facto de ser aos esses e com inclinações incorre nas tais violações dos critérios de segurança. O que se constituiu em mais uma estrada da morte.
CC - Nem é preciso ser especialista para se perceber isso. Basta só olhar para o traçado.
Jorge Alves - Isto é tão mais grave, porque estamos a assistir a várias coisas. Como já disse, não se respeitam elementares critérios de segurança, vai-se construir uma estrada que não vai resolver os problemas de mobilidade, porque uma das recomendações para estradas deste tipo, com três vias para cada lado, é existirem nós distanciados entre si por 3 ou quatro quilómetros e, a existirem, devem ser nós que ligam a vias de igual nível, porque a não ser assim vai-se verificar enorme funilamento de tráfego. Neste traçado, estão meia dúzia de nós, sendo que nenhum deles cumpre estas características.
E isto vai fazer com que o tráfego se avolume, à saída, em cima da via. Além domais, aquilo que dizem ser túneis não passa de valas abertas. Portanto, este projecto, logo à partida, enferma destes problemas todos. E tão mais grave é isto, quando poderia ser evitado. Podia-se ter feito um traçado direito – e existem terrenos para isso.
CC - Ressalta de tudo isto, que se trata da cultura do betão a vingar…
Jorge Alves - Exactamente. Está a rebentar pelas costuras a falta de respeito pelas populações, a leviandade política com que se trata estes assuntos. É um traçado aos esses, para beneficiar interesses imobiliários, quando podia ser feito a direito, um traçado lógico [ver imagem] em terrenos livres. Impõe-se um traçado atirado literalmente para cima das populações, quando
existem condições para o fazer a direito sem afectar a qualidade de vida dos cidadãos. Ainda para mais, quando os terrenos livres são propriedade do Estado.
CC - Então, mas os engenheiros não sabem fazer traçados a direito? Têm alguma alergia aos terrenos livres para construírem estradas?
Jorge Alves Até parece que sim. Mas a parte grave da questão é que isto é uma obra de interesse público e, neste momento, isso não se verifica porque para todos estes terrenos livres existem grandes projectos imobiliários. E, quando se fala em projectos imobiliários, estamos a falar de uma concessão maior do que a cidade de Bragança.
CC - São os novos empreendimentos de que fala o parecer da CâmaraMunicipal da Amadora?
Jorge Alves - Exactamente. Todos estes terrenos são para grandes projectos imobiliários acobertados pelos poderes públicos municipais. Estamos a falar de uma área de construção de 1 milhão e 500 mil metros quadrados. Uma das poucas zonas verdes do concelho da Amadora vai ser invadida pelo betão.
Lena d’Água - Em vez de construírem a estrada numa zona onde não vive ninguém, vão rasgar ao meio o Bairro de Santa Cruz. Mas isto faz algum sentido? Eu não acredito…
Jorge Alves - A lógica é o extermínio de uma zona verde para dar vez à especulação imobiliária de que o Estado se torna agente.
CC - O traçado a que vocês chamam alternativo, foi o proposto por entidades absolutamente insuspeitas.
Jorge Alves Este traçado foi o proposto logicamente por qualquer cidadão que olhasse para o mapa. No entanto, nós sabemos que foram desenvolvidos estudos sobre este traçado, só que estão dentro da gaveta. Não houve interesse…
CC - Até do ponto de vista do erário público, este traçado sairia mais barato?
Jorge Alves Provavelmente. Até porque os terrenos livres são propriedade do Estado, o que evitaria os nós do actual projecto, os muros de contenção [que chegam a ficar mais caros do que um túnel] e as respectivas indemnizações por expropriação.
O que é uma obra de interesse público, que deveria resolver os problemas de mobilidade e segurança, transformou-se numa estrada de serventia de umamega urbanização, ou de várias urbanizações. E isto para valorizar os interesses imobiliários. A CRIL transformou-se numa infra-estrutura para que grande parte destes apartamentos, construídos nesta zona, venham a ser vendidos por mais 15, vinte ou trinta porcento. Isto é tão real, que o projecto da Falagueira – e o relatório que o acompanha – tem partes onde se diz, por exemplo, que o nó da Damaia é um factor de sucesso para a valorização destes empreendimentos. E, portanto, vemos o Estado, com o dinheiro dos contribuintes, promover um atentado contra as populações e o ambiente para valorizar empreendimentos imobiliários, a favor de uma pequeníssima elite dos interesses. Ou seja, é o Estado o promotor da especulação imobiliária. E isto não diz respeito só às pessoas que vivem nestas zonas, diz respeito a todos os que contribuem
para os cofres do Estado.
CC - E tem a ver com cidadania.
Jorge Alves - Claro. Por isso é que temos vindo a desenvolver uma consciência cívica, porque acima disto está uma coisa muito mais importante. E trata-se, acima de tudo, não de defender os nossos interesses mas, outrossim, os nossos direitos. E o que nos preocupa é esta mentalidade dominante de tratar mal os cidadãos e, em nome do interesse público, fazerem-se todos estes disparates. Esta é uma cultura política que tem de ser alterada rapidamente.
CC - E parece haver uma campanha de mistificação, de branqueamento deste aborto de projecto. E estou a referir-me às imagens difundidas pelo governo, onde se apresenta o projecto de uma perspectiva mais favorável e manipuladora.
Jorge Alves- A gravidade disto é tão evidente, que os responsáveis políticos que deram o aval a isto – tendo consciência da sua gravidade – tentam esconder esta realidade. E, então, para esse efeito, não se coíbem de manipular imagens, de fazer fotomontagens distorcidas, de proferirem declarações técnicas desprovidas de verdade, de fazerem toda uma campanha apresentando isto como um projecto pioneiro. Como, aliás, aconteceu no dia da adjudicação, a 16 de Novembro, em que com uma grande pompa e circunstância, com palanque e tudo, onde o ministro das Obras Públicas, o primeiro-ministro, os presidentes das câmaras, teceram elogios a este traçado. E a obra, sendo adjudicada ao 7º concorrente, por mais 16 milhões de euros [não por questões de favorecimento, dizem – mas por razões de qualidade técnica] … E, cinco dias depois, quando o Observatório de Segurança de Estradas e Cidades apresenta um estudo a denunciar os graves problemas deste traçado, e os seus vários pontos negros, foi surpreendente ouvirmos o presidente da Estradas de Portugal dizer que aquilo era só um estudo e não se pode falar de um projecto que não existe. Ora, se aquilo é um projecto que não existe, o que é que aqueles senhores todos, no dia da adjudicação, estavam a fazer em cima do palanque e, mais que isso, a falar sobre quê?
CC - Este traçado aos esses deve ser para apelar à prática de desportos radicais…
Jorge Alves Além de ser aos esses, é uma espécie de carrossel. Por exemplo, a curva 4 é uma espécie de looping. Este traçado é tão mau que vai ser obrigatoriamente imposta uma velocidade de 60 quilómetros/hora e controlada por radares,nem vai ser por sinalética vertical – e estamos numa extensão de 3, 7 quilómetros. Isto é do conhecimento de toda a gente, mas parece não haver nenhuma preocupação de quem tem a capacidade de decidir.
CC - Ó Lena, isto é como uma espécie de violação das tuas memórias de infância.
Lena d’Água Estou-me nas tintas. As minhas memórias de infância já ninguém as tira, essas são minhas. E isso é o passado. Agora, este é um presente execrável. E estamos a ver o que se faz por cima de pessoas que estão pacatamente nas suas
vidas. E é por causa de coisas destas que as pessoas cada vez votam menos, já não acreditam. Até há pouco tempo atrás, eu não pensava ser possível fazerem-se aberrações deste género, ainda para mais havendo um terreno vazio.
Jorge Alves Inclusive, nós pedimos um parecer ao Instituto do Ambiente que, aliás, nos forneceu três, e onde expressamente declara não se ter respeitado a declaração de impacte ambiental. E o Ministério das Obras Públicas, em função de pareceres, de um organismo do próprio Estado, decidiu dispensar o Instituto do Ambiente de todo o processo. E, nesta matéria, não há entidade mais avalizada para se pronunciar do que o Instituto. E os tribunais dão cobertura às ilegalidades, indeferindo acções por “razões processuais” sem qualquer fundamento. O poder judicial, neste momento – e por incrível que pareça –, não está interessado em fazer cumprir a Lei.
Lena d’Água Mas eles não cedem porque, no caso de Santa Cruz, sabem tratar-se de uma população envelhecida, de velhotes a caminho da farmácia e da fisioterapia, sem força, nem vontade, nem, esperança.
Jorge Alves Exactamente.
CC - O que é que se pode fazer?
Jorge Alves Isto é um problema de cultura democrática. Os cidadãos são responsáveis por não participarem, por permitirem que os outros decidam por eles. A falta de preocupação das pessoas é que leva a que gente desta decida nas suas costas.

Jornal "Conversas de Café" (CC)
9 de Maio de 2008

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